No sertão do Brasil, onde o sol castiga e a poeira dança com o vento, o tempo parece andar mais devagar, e as histórias, ah, essas ganham vida. Principalmente naquelas noites sem lua, sob o céu salpicado de estrelas, quando o cheiro de café coado se mistura com o do mato úmido e o silêncio da fazenda é quebrado apenas pelo canto dos grilos e o coaxar dos sapos. Foi numa dessas noites que o Zé Cangaço, o peão mais velho da fazenda do Coronel Joaquim, contou a história do Velho da Capa Preta.
Zé Cangaço era um sujeito de poucas palavras, mas quando abria a boca para um “causo”, todos se calavam. Sentado num banquinho de madeira, com o chapéu de couro puído na cabeça e os olhos fixos na fogueira, ele começou:
“Há muitos e muitos anos, antes mesmo de eu nascer, diz que andava por essas bandas um homem estranho. Ninguém sabia de onde vinha, nem pra onde ia. Era um sujeito alto, magro, e usava sempre uma capa preta que arrastava no chão, mesmo nos dias mais quentes. O rosto dele? Ninguém nunca viu direito. Tava sempre escondido sob o capuz da capa, ou então tava tão escuro que não dava pra reparar.
Ele aparecia do nada, nas porteiras das fazendas, pedindo pouso. Dizia que era viajante, que tava só de passagem. E o povo, que aqui sempre foi de bom coração, recebia. Dava comida, cama, um cantinho pra descansar. Mas era só ele ir embora que a desgraça batia na porta.
Dona Inácia, lá da fazenda do Ribeirão, foi a primeira. O velho pediu pouso, e ela, coitada, deu. No dia seguinte, a melhor vaca leiteira dela, a Mimosa, amanheceu morta no curral, sem explicação. Nenhuma marca, nenhum sinal de doença. Só morta. Dona Inácia jurava que, na noite em que o velho ficou lá, ela ouviu um barulho estranho, como se algo raspasse na parede do quarto dele, mas não deu bola.
Depois, foi a família do seu Chico Mineiro. O velho da capa preta pediu água na roça dele, no meio do plantio de milho. Seu Chico, prestativo, ofereceu a moringa. No outro dia, a plantação inteira amanheceu queimada, seca, como se o sol tivesse torrado tudo num piscar de olhos, mesmo depois de uma chuva forte que tinha caído na noite anterior. O seu Chico só encontrou um rastro estranho, como se algo pesado e com as pontas afiadas tivesse arrastado no chão perto da plantação.
A notícia do Velho da Capa Preta se espalhou como fogo em capim seco. O povo começou a ficar arisco. Se viam um vulto escuro na estrada, já se benzeiam e corriam pra casa. Acreditava-se que ele não roubava, não matava ninguém diretamente. A coisa dele era mais sutil, mais perversa. Ele trazia a má sorte, a desgraça disfarçada de cortesia.
Uma noite, o finado Tiãozinho, o pai do compadre Joca, era um menino ainda, tava voltando da casa de um primo. A noite tava escura que nem breu. De repente, ele viu um vulto na beira da estrada. Um vulto alto, com uma capa preta que arrastava no chão. Tiãozinho, criança, curioso, parou pra olhar. O velho virou a cabeça devagar, e por um instante, o vento levantou o capuz. Tiãozinho disse que viu. Viu dois olhos vermelhos, que brilhavam como brasas no escuro, e um sorriso… ah, um sorriso que não era de gente. Um sorriso que parecia de caveira.
Tiãozinho desmaiou de susto. Quando acordou, já era dia, e ele tava deitado no meio da estrada. Correu pra casa, tremendo que nem vara verde, e contou o que viu. O pai dele, um homem de fé, levou ele na igreja, benzeram o menino, e desde então, Tiãozinho nunca mais foi o mesmo. Ficou meio calado, meio assustado, e nunca mais andou sozinho à noite.
Dizem que o Velho da Capa Preta nunca mais foi visto por essas bandas depois daquele dia. Uns contam que ele se cansou de tanto azar que dava, outros dizem que ele foi embora procurar um lugar onde a sorte fosse mais farta pra ele poder espalhar a desgraça. Mas até hoje, quando a noite cai e o vento geme nas porteiras, a gente se lembra dele. E é bom se benzer, só por garantia. Porque o mal, meus amigos, gosta é do silêncio e da escuridão pra fazer das suas.”
Zé Cangaço fez uma pausa, pegou um pedaço de fumo de rolo e mastigou devagar, com os olhos ainda fixos na fogueira, que agora lançava sombras dançantes na parede da casa. Um arrepio correu pela espinha de todos que ouviam. O silêncio voltou, pesado, só quebrado pelo chiado da brasa e o sussurro do vento entre as árvores. Ninguém ousou dizer uma palavra, com medo de que, ao quebrar o encanto da história, o Velho da Capa Preta, quem sabe, não estivesse esperando do lado de fora.